Fonte: https://goo.gl/olYzqI
Álbum: O rigor e a misericórdia
Artista: Lobão
Ano: 2016
Cotação: 10
Pra quem gosta de: produção robusta, letras sarcásticas e vibe rock n' roll anos 70.
Falar de um dos maiores músicos brasileiros, há muito, deixou de ser apenas uma opinião sobre sua obra. Virou uma possibilidade imensa de argumentações sócio-políticas, seja para concordar ou atacar. Por que, do alto de seus 57 anos, João Luiz Woerdenbag Filho - o lobão - mostra, em O rigor e a misericórdia que seu texto permanece afiado e atemporal. E que não irá ceder um milímetro de espaço para um entendimento difuso de suas canções. Por esse motivo, o novo álbum (financiado por crowdfunding) precede o lançamento de seu 3o livro, que o próprio define como uma "narrativa poética-político-musical",onde explica os processos e contextualiza a criação das 14 músicas que dão corpo ao disco.
A produção é luxuosa, fruto de uma experiência sólida de lobão com os estúdios, onde conseguiu captar um som cristalino e poderoso. Lobão ainda tocou todos os instrumentos, numa perspectiva de one-man-band que, se em trabalhos de gente de menor talento pode soar como pretensão e ego, aqui transforma o velho lobo numa gama absurda de novas personas. Com formação clássica e influência setentista, lobão reúne o melhor de seus universos e entrega uma obra épica, urgente, necessária.
Se não te agrada as opiniões de lobão, permita-se desconsiderar o livro e atenha-se ao álbum. Ainda que o cantor discorde, ambos têm vida singulares, podendo se complementar mas sem exigir a leitura de um para o entendimento do outro.
No Twitter, lobão respondeu de forma pouco amistosa quando comparado - ainda que do outro lado da corda - seu álbum com o último lançado pelo Titãs, o ótimo Nheengatu (leia resenha aquihttps://goo.gl/6hf4ji ). Mas a analogia serve para colocar a discussão em dois pólos distintos. Ambos álbuns tratam da atualidade de forma ferrenha, e do quanto a sociedade se tornou medíocre e rasa quanto a seus problemas. Mas se o discurso dos Titãs apenas situam as questões, lobão é mais ferino: ele aponta os culpados. E para finalizar a distopia, ele abre mão dos riffs de três acordes e da verve punk juvenil (que teima em cercar o grupo paulistano, quando tentam fugir do pop radiofônico da última década) e cria sua ópera-rock recheada de licks, dedilhados e ganchos estilísticos da mais alta estirpe.
Seus detratores, aliás, usarão o discurso de metade das canções para repetir o clichê de que o músico é um rockeiro reaça decadente. Mas ao usarem deste artifício, ignorarão uma dos maiores conceitos do rock como arma social: ser arbitrário - e nunca conivente - ao governo. Lobão fala com propriedade do que defende, e tal propriedade não exige concordância. Exige questionamento. Argumentação.
O álbum abre com a instrumental Overture - num órgão a la Carl Off ou Wagner - como prenúncio de um hecatombe, e desemboca em Os vulneráveis, uma rocksong clássica, numa vibe que deixaria Jimmy Page feliz pelo solo. A letra aponta para um aviso repaginado que ele, lobão, está vivo, e que "seu impossível nunca o abandona".
Após insinuar, chega a hora de atacar. Ou cuspir de volta a ofensa. A marcha dos infames utiliza de uma batida marcial, cruzando Queen com Rammstein pra destilar sarcasmo sobre a lista publicada pelo vice presidente do PT, Alberto Cantalice, onde ele figurava ao lado de Gentili e Jabor, dentre outros, como inimigos da pátria. Seria apenas uma resposta, não fosse a contundência do texto e a dramaticidade da interpretação. Esperto que só, a música responde sem dar nome aos bois.
Assim sangra a mata fala sobre o garimpo na Amazônia, e o mellotron dá um nuance quase lullaby à música.
Uma pausa para respirar.
O que es la soledad em sermos nos remete à Chorando no campo, do clássico Vida bandida, mas após cantar todas as possíveis solidões, desta vez lobão parece exorcizar a intenção. Quando diz que a solidão é uma "companhia que inventou só pra sentir" não há amargura na voz. E a letra, vertida para o espanhol, só aumenta essa sensação.
Na sequência, temos o blues dilacerante de Alguma coisa qualquer. Feito, há cerca de 20 anos, sob encomenda para Cássia Eller, ficou engavetado por todo este tempo. E aqui surge com uma intro flamenca e desemboca num shuffle pesadíssimo.
Dilacerar conversa com "Nostalgia da modernidade", e o título é auto-explicativo. Sob uma base inspirada (com direito a solo dobrado de guitarras), lobão pondera o amor e a criação como armas poderosas contra o ódio e o exílio.
Os últimos farrapos da liberdade prepara o terreno para a fúnebre A posse dos impostores. Com uma segunda voz oitavada, o riff remete à Eletric funeral, e lobão declama os versos num deboche épico e pomposo. Ainda que remeta à contemporaneidade, é um dos melhores momentos do álbum e possivelmente será das favoritas ao vivo.
Em ação fantasmagórica à distância, o violão quase samba-choro usa da teoria quântica para uma analogia de que é possível entrelaçar mundos distintos pela aproximação. Paulinho da Viola ou Egbert Gismont ficariam orgulhosos do arranjo.
Profunda e deslumbrante como o sol contempla o astro- rei, numa influência temática com Fat old son do Pink Floyd. O horizonte é de busca, e a letra desenha esta lógica.
Nova pausa para respirar.
Uma ilha na lua fala sobre a simplicidade das coisas, e ao nomear seus três felinos (os tigres mirins, como canta), há uma sutileza bonita em perceber o mundo através das pequenas conquistas. É minha faixa favorita até o momento, e qualquer pessoa que tenha gatos vai se identificar com o universo da canção.
Feita em homenagem à sua cunhada, Mônica, A esperança é uma praia de outro mar teve a única participação especial do álbum. Seu sobrinho, Puig, é responsável pelo solo, e a canção aborda a tristeza da perda pelo viés do quem vê a esperança viável apenas em outra esfera.
O álbum fecha com a O rigor e a misericórdia, e faz uma ponte interessantíssima com outra canção de lobão: A queda.
Com arranjos de cordas e uma melodia claustrofóbica, enquanto A queda usa do princípio físico dos corpos em repouso (eles sempre irão cair), na faixa-título vocifera que vai "cair pro alto, se arriscar, mesmo com o coração mais triste que o fim dos dias" como se informasse que ele, o lobo, o solitário, não desistiu. E nem pretende. Ao terminar com o religioso verso "aleluia, aleluia", lobão conversa consigo e obtém a própria resposta: "penso, logo exilo".
No saldo final, O rigor e a misericórdia merece aplausos por discorrer além da possibilidade de uma análise única. Há múltiplas, e elas ganham nuances próprios a cada audição, podendo estar ao lado de A vida é doce e Vida bandida como um dos favoritos dos fãs.
A escritora russa Ayn Rand, certa vez disse que "a menor minoria na Terra é o indivíduo." E nesse contexto, Lobão fez de seu personagem um ermitão urbano atípico, já que utiliza de sua individualidade para alcançar o coletivo.
Continua sendo um indivíduo plural, mas se absteve das amarras e facilidades do mainstream para se autoconhecer e nos apresentar um ego enorme. Criativo e proporcional ao tamanho de seu talento.